“Surubinha de leve”: crime ou liberdade de expressão?

Nesta semana, a letra de um funk carioca e um bloco de carnaval embrionário de São Paulo repercutiram por terem algo em comum: a acusação de fazer apologia ao crime.

O primeiro caso envolveu o funk “Surubinha de leve”, do carioca Mc Diguinho, que alcançou o topo do ranking de músicas que mais viralizaram no Brasil nas últimas semanas. A letra, que se refere a mulheres como “piranha” e “puta”, diz:

“Hoje vai rolar suruba
Só uma surubinha de leve, surubinha de leve
Com essas filha da puta
Taca a bebida, depois taca a pica e abandona na rua”

A música foi amplamente criticada, acusada de fazer apologia ao crime de estupro e, por fim, na quarta-feira (17), removida pela distribuidora do catálogo do Spotify, a pedido da plataforma de streaming.

Pelas redes sociais, a estudante de artes visuais Yasmin Formiga, de João Pessoa (PB), publicou uma foto maquiada como se tivesse sido agredida, enquanto segura um cartaz com a letra. Na publicação ela acusa a música de colaborar para que “as raízes da cultura do estupro se estendam”. “Sua música é baixa ao ponto de me tornar um objeto despejado na rua”, diz.

Em resposta na quarta-feira (17), Mc Diguinho fez a seguinte declaração: “Se a minha música faz apologia ao estupro, prazer, sou o mais novo estuprador. Apenas fiz a música da realidade que eu vivo e muitos brasileiros vivem”.

Um dia depois, o cantor se defendeu dizendo que foi “mal interpretado” e que lançaria uma “versão light” da música. “Só surubinha de leve com essas minas malucas / Taca a bebida, depois taca e fica / Mas não abandona na rua”, diz a nova letra.

Carnaval, opressão e tortura#

Na terça-feira (16), o Ministério Público de São Paulo abriu procedimento de investigação criminal para apurar se um bloco de carnaval, que ainda não saiu do papel, faz apologia ao crime de tortura. Chamado “Porão do Dops 2018”, o bloco é organizado pelos membros do grupo “Direita São Paulo”.

Em um evento no Facebook, convocado para o dia 10 de fevereiro e ainda sem local definido, o grupo convida “brasileiros anticomunistas” a participarem do bloco que contará com “cerveja, opressão, carne, opressão” e “marchinhas opressoras”.

“Venham à caça, soldados!”, diz o texto na rede social ilustrado por uma imagem do delegado Sérgio Paranhos Fleury, repetidamente acusado de ter aplicado tortura durante interrogatórios nos chamados “porões” do Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social).

O grupo faz oposição a outro bloco de carnaval chamado “Bloco Soviético”. Criado em 2013, o bloco chegou a concentrar 20 mil foliões no carnaval de 2017. Em 2018, no entanto, o grupo decidiu não sair à rua após enfrentar “burocracia” e “desrespeito” com a prefeitura.

Em nota publicada nesta quinta-feira (18), o Direita São Paulo disse que “vai se manter firme no que concerne à manutenção da nossa liberdade e dos cidadãos deste país”, citando o artigo da Constituição Federal que garante ser livre a manifestação do pensamento e a liberdade de expressão. “Não será a rixa e o proselitismo ideológico praticado pelos senhores, que deveriam conhecer a carta magna melhor do que ninguém, que vai nos dobrar”, diz o grupo.

Em debate#

Sobre os polêmicos casos e o debate sobre as diferenças entre o que pode ser defendido como liberdade de expressão e o que é apologia ao crime, o Nexo conversou com o advogado, professor de Direito Constitucional na PUC-SP e coordenador da graduação da FGV Direito, Roberto Dias.

Qual a fronteira entre liberdade de expressão e apologia ao crime?

Roberto Dias A liberdade de expressão é um direito fundamental, previsto na Constituição de 1988, e essencial à democracia. Não há democracia sem que as pessoas possam expor as suas ideias e contrapor argumentos às manifestações dos outros. No entanto, há crimes que podem ser cometidos por meio da palavra, como, por exemplo, a injúria, a calúnia, a difamação, o racismo, a veiculação de símbolos ou propaganda nazista e a apologia ao crime. Em relação a este último crime, o Código Penal traz a seguinte definição: “Art. 287 – Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena – detenção de três a seis meses, ou multa”. Portanto, há ampla liberdade de expressão, garantida constitucionalmente, mas não se pode, por meio da manifestação do pensamento, cometer atos definidos como crime na legislação penal.

Devemos, lembrar, também, que o STF, em várias ocasiões, como, por exemplo, quando julgou os casos da Lei de Imprensa editada durante o regime militar (ADPF 130) e entendeu que ela era incompatível com a Constituição de 1988, ou quando analisou o caso das biografias não autorizadas (ADI 4815) e afastou a exigência de prévia autorização para a publicação das obras, ou ainda quando reconheceu a constitucionalidade das marchas da maconha (ADPF 187) – em todas essas ocasiões, o Supremoreforçou a proteção da liberdade de expressão, impedindo a efetivação da censura prévia. No entanto, ao julgar o Caso Ellwanger (Habeas Corpus nº 82.424), o STF concluiu que a liberdade de expressão não protege manifestações de cunho antissemita, que podem ser objeto de persecução penal pela prática do crime de racismo. Esses casos são parâmetros que podem nos ajudar a fixar a fronteira entre liberdade de expressão e apologia ao crime. 

Os mesmos casos poderiam ter interpretações jurídicas diferentes, dependendo do país? Por quê?

Roberto Dias Sem dúvida, é possível que ocorram interpretações diferentes, dependendo do país. Há países com forte tradição de proteção da liberdade de expressão, como, por exemplo, os Estados Unidos da América, que estabelece ampla garantia de manifestação, principalmente em razão da previsão de sua primeira emenda constitucional. Em outros países, que de fato não são democráticos, obviamente que não se poderia imaginar uma forte proteção da liberdade de expressão, mas, ao contrário, contundentes práticas de censura. E há países democráticos que não têm a mesma visão dos Estados Unidos, como o próprio Brasil, ou a França, que garantem a liberdade de expressão, mas não admitem, por exemplo, manifestações antissemitas.

Como fica a questão da “fronteira”, em casos em que ainda há uma ampla discussão sobre se o ato defendido deve ser crime ou não, como porte e consumo de maconha?

Roberto Dias A meu ver, as situações são diferentes, pois, no caso da marcha da maconha, não se tratava de apologia ao crime – como decidiu, corretamente e por unanimidade, o STF –, mas de manifestações legítimas que buscavam questionar uma política equivocada de combate às drogas, bem como propunha a mudança legislativa. Proibir esse tipo de manifestação geraria efeito desastroso e antidemocrático, especialmente por fossilizar a vigente legislação por meio da interdição do debate sobre a pertinência de sua existência. Levando a hipótese para outros casos, não se poderia sequer discutir a mudança das normas que criminalizam o aborto ou a pederastia militar (art. 235, do Código Penal Militar, analisado recentemente pelo STF na ADPF 291). Isso não seria democrático. Enfim, apologia de crime ou criminoso é conduta proibida pela lei penal. Mas a Constituição Federal não impede que se discuta a mudança dessa legislação ou se defenda a ideia de revogar essa previsão legal ou de qualquer outra norma jurídica.

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