Guerra Fria 2.0: o que o caso TikTok diz sobre a nova relação entre China e EUA

Foto: Jason Lee/Illustration/File Photo/Reuters

Ao mesmo tempo em que tentam costurar acordo comercial, Estados Unidos e China vêm colecionando embates que demonstram um conflito extremamente profundo. O governo americano (não somente o presidente Donald Trump, como também Barack Obama – e, agora, Joe Biden) critica há décadas a postura da China em questões como transferência de tecnologia e propriedade intelectual.

E, em pleno ano eleitoral, é natural que a coisa escale. Os EUA também culpam a potência asiática pela pandemia do novo coronavírus e por problemas migratórios.

“Existe um embate estrutural, que tem a ver com o papel que cada um desses países desempenha dentro do sistema econômico internacional”, diz Fernanda Magnotta, professora e coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP.

Juntamente com isso, Magnotta explica que a China vem ressignificando aquela visão estereotipada de que o país só produzia produtos de baixa qualidade. São projetos como a Iniciativa do Cinturão e Rota e o Made in China 2025, que prometem integrar a China no processo produtivo de países da Europa, da Ásia e da África, e que “incomodam os Estados Unidos”.

Para complicar um pouco mais, no meio dessa disputa estão milhões jovens desavisados fazendo vídeos de maquiagem, receitas, dancinhas, sketches de humor.

Explico. O TikTok, app chinês popular no mundo todo, pode ser obrigado a fechar sua operação americana, caso essa não seja vendida para alguma empresa local. Determinação do próprio Trump que culminou no pedido de demissão do americano Kevin Mayer, então CEO da rede social.

A China respondeu revisando sua lista de tecnologias que estão proibidas ou restritas para exportação pela primeira vez em 12 anos. Tecnologias como serviços de envio de informações pessoais baseados em análise de dados e tecnologia de interface interativa de inteligência artificial, exatamente o que o TikTok faz, precisarão de autorização de venda do governo.

“O Trump não cometeu estelionato eleitoral neste caso. Está sendo consistente com o que disse que faria em relação à China”, afirma Fernanda. “E, se reeleito, as coisas podem endurecer ainda mais. Se costuma dizer que o segundo mandato é o mais rígido, aquele utilizado para criar legado.”

Isso porque não há preocupação com reeleição e, consequentemente, diminui o peso da opinião pública nas decisões do Executivo.

Dado esse contexto, é correto afirmar que este não é um caso isolado e que uma luz vermelha pode ter sido acesa para empresas chinesas presentes no mercado americano. Nessa linha, a Huawei se viu impedida de instalar sua estrutura de 5G no país e gigantes como Alibaba e Tencent podem ser as próximas da lista.

Assistindo a essa briga de camarote, o mercado americano parece não estar muito preocupado com a postura de Trump.

“No caso específico do TikTok, os investidores americanos não pareceram se incomodar. Pelo contrário, até consideram interessante a entrada de um grande player americano no negócio”, diz William Alves, estrategista-chefe da Avenue, corretora brasileira que atua nos Estados Unidos.

Alves também corrobora o sentimento de que empresas chinesas podem passar por escrutínio maior a partir de agora, o que pode afastá-las do mercado americano. Aqui, as novas parcerias com mercados europeus podem se mostrar cada vez mais úteis.

“Tenho salientado para os clientes que, apesar de haver muitas empresas chinesas interessantes, com bons retornos e mercado gigantesco, é preciso ficar esperto”, diz ele. “Estamos em ano eleitoral e bater na China virou hobby, é um consenso entre os dois partidos.”

Entre as mudanças esperadas, uma lei que tramita no Congresso americano pretende “apertar” empresas estrangeiras em seus processos de contabilidade, para “tornar as companhias listadas em bolsa mais confiáveis”. “As que não conseguirem, são rebaixadas ao mercado de balcão, com menos liquidez e exposição”, afirma o analista.

A brasileira Braskem chegou a sofrer processo parecido, quando deixou de prestar contas como a legislação estabelece. Não por acaso, a China criou em 2009 uma subsidiária de tecnologia ligada à bolsa de Shenzhen, o ChiNext, nos mesmos moldes da Nasdaq. O índice foi reformado em agosto e promete ser cada vez mais competitivo.

Para os especialistas, a disputa pode até estar inflamada pelo pleito americano, mas é algo estrutural, que deve se permear no longo prazo.

“Os americanos, depois da Segunda Guerra, criaram as regras do jogo econômico e assumiram a liderança, entendendo que se beneficiavam com isso”, diz Magnotta. “Trump está tentando mudar isso e, como não existe vácuo de poder, a China está se posicionando para tomar estes espaços.”

Linha do tempo sem dancinhas

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, foi eleito em 2016 com forte discurso anti-China, algo já presente no governo Obama em certa medida. E, o que podia não ter passado de retórica para aglutinar eleitores, foi posto em prática pelo mandatário. Exemplo disso é que o governo americano tem endurecido as relações com o governo Chinês e com empresas asiáticas presentes ali.

Quatro anos depois, com as eleições presidenciais batendo na porta novamente, Trump volta a subir o tom. Talvez o caso mais emblemático disso seja o do app de edição e compartilhamento de vídeos TikTok, febre entre jovens do mundo todo. O chefe do executivo ameaça desde julho encerrar as atividades da companhia em solo americano, sob o pretexto de que a rede não protege (ou até vaza) os dados dos seus usuários.

Criada na China, a rede social tem uma base de fãs gigantesca nos EUA e até tentou certa aproximação com os americanos. Kevin Mayer, um ex-alto executivo da Disney, foi apontado CEO da empresa em maio para tentar dar uma cara mais ocidentalizada para a operação. Durou pouco mais de quatro meses no cargo.

“Nas últimas semanas, conforme o ambiente político mudou drasticamente, fiz uma reflexão significativa sobre o que as mudanças estruturais corporativas exigirão e o que isso significa para a função global para a qual me inscrevi”, disse Mayer em um memorando aos funcionários que foi obtido pelo CNN Business.

Essa “mudança de ambiente” referida pelo gestor faz referência ao ultimato dado por Trump: ou o TikTok vende sua operação americana até meados de setembro, ou será proibido no país. Com isso, a empresa chinesa negocia com players gigantes como Microsoft (em parceria com o Walmart) e Twitter.

E Trump promete não ficar por aí. WeChat, de mensagens instantâneas, Alibaba, de e-commerce, e Tencent, dona de jogos como League of Legends, são algumas empresas que estão na mira. Isso sem contar com a Huawei, do setor de telecomunicações, que não poderá ofertar sua estrutura de 5G nos EUA e em países aliados como o Reino Unido e possivelmente até o Brasil.

REUTERS

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