Obscuro: Depoimento de João de Deus tem curto-circuito, falha e policial atropelado

Foram mais de três horas de depoimento, que resultaram em sete páginas de interrogatório, com as versões do médium João de Deus para acusações de abusos sexuais. Todas negadas por ele. Ainda assim, novas denúncias foram recebidas pelo Ministério Público Federal de Goiás contra o principal líder espiritual de Abadiânia.

A Polícia Civil divulgou ontem novos detalhes do depoimento do médium, suspeito de abusar sexualmente de mais de 400 mulheres. João de Deus apresentou duas versões para cada denúncia e negou os crimes. “Ele apresenta a versão de cada fato e não confessa a prática destas ações”, afirmou o delegado-chefe da polícia goiana, André Fernandes.

“Durante o depoimento, o comportamento dele foi de negação das acusações, agindo de forma natural, respondeu a todas as perguntas e compreendeu as acusações a ele imputadas. Ele afirma que todos que iam naquela casa era de forma voluntária, espontânea, que os atendimentos eram coletivos e que não havia estes abusos”, disse André Fernandes.

Ao todo, 15 mulheres foram ouvidas pela Polícia Civil. Apesar de João de Deus negar as acusações das vítimas, o delegado afirma que os relatos de abusos durante atendimentos na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, são muito contundentes. João de Deus deve ser ouvido novamente em breve.

Na delegacia, teclado quebrado, gritos e fio queimado

O depoimento de João de Deus, 76, na noite de domingo, em Goiânia, teve uma sequência de imprevistos que deixou os investigadores desconfiados. Na hora de o médium falar, segundo os presentes, o computador usado para registrar as alegações do preso parecia ter vida própria. “Você apertava uma tecla e ela OOOOOOOOO…”, descreveu a delegada Karla Fernandes, coordenadora da força-tarefa.

Estava calor, e a própria delegada resolveu usar uma extensão para ligar o ar-condicionado. Segundo relata a investigadora, o fio explodiu e, de quebra, queimou o frigobar. “Todo mundo gritou dentro da sala”.

A oitiva com o médium estava marcada para ocorrer em Anápolis, cidade próxima à capital goiana, mas um imprevisto tirou o escrivão de circulação. Ele foi atropelado na BR-060, a caminho da delegacia, e quebrou o braço. O depoimento foi transferido para Goiânia. Foi possível domar o teclado, todos se recuperaram do susto e o interrogatório fluiu por mais de duas horas. Para a delegada, os episódios podem não ser só obra do acaso. “Estamos diante de uma situação que envolve crenças e energias”, reconhece ela, que se diz “espiritualizada”.

Questionada se estava com medo, disse: “Não, mas tenho respeito”. Ela classifica João de Deus como um homem que tem, de fato, “um poder”. “Mas houve um desvio no meio do caminho”, disse a delegada.

O líder espiritual está em uma cela de 16 metros quadrados no Núcleo de Custódia do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Ele dormiu com outros três presos e comeu pão com manteiga e achocolatado na manhã de ontem.

Os passos da defesa
O advogado Alberto Toron, que defende o médium, disse que tem “sérias dúvidas sobre os depoimentos incriminatórios”. “Tivemos acesso a parte dos depoimentos e sem fotos das vítimas, então alguns casos ele não se lembra. E tem relatos de mulheres que dizem ter sido abusadas e voltaram lá outras vezes. Então, é preciso escrutinar tudo com calma para que não haja um linchamento”, explicou.

O defensor disse ainda que o médium alega inocência e que acredita que isso é uma armação contra ele. “O senhor João acha que tem gente que o quer destruir”, completou o defensor.

Toron informou que entrou com um pedido de habeas corpus ontem e também pedindo, se necessário, que seja concedida a prisão domiciliar do médium. Sobre a movimentação de R$ 35 milhões nas contas de João de Deus, o advogado explicou que não houve nenhum saque.

“Não houve nenhuma movimentação. Ele simplesmente baixou as suas aplicações para fazer frente às necessidades dele. Ele se apresentou dando mostras claras de que respeita a Justiça e o Poder Judiciário e por isso está à disposição”, explicou.

Silêncio da vítima
Em meio aos depoimentos de mulheres que contam ter sido abusadas por João de Deus está o de Flávia (nome fictício), 24 anos. Ela afirma que deixou a violência sofrida guardada por anos por sentir culpa, medo e vergonha. “Eu tinha um carinho muito grande pelo médium João, sempre fazia questão de cumprimentá-lo”, lembra.

Segundo ela, a decisão de ficar em silêncio, após o abuso, cometido em 2005, foi tomada também pelo receio de manchar a imagem de um trabalho no qual ela acreditava. “Minha família frequentava a CDI também, houve curas em nossa família”, lembra Flávia.

Denúncias contra médium passam de 400
O promotor de Justiça Luciano Miranda, que integra a força-tarefa formada para investigar as denúncias de abusos sexuais por parte do médium João de Deus, disse, ontem, que o Ministério Público já recebeu mais de 400 relatos de abuso sexual e que, desse total, 30 foram formalizados por meio de depoimentos colhidos presencialmente nos estados.

Segundo Miranda, esses 30 casos apontam para a prática de três crimes que aconteciam de forma “reiterada”: estupro, violação sexual mediante fraude e estupro de vulnerável. O promotor disse ainda que vários desses relatos aconteceram nos últimos seis meses e, portanto, podem ser passíveis de punição.

“Nós já recebemos mais de 400 relatos via e-mail. Desses 400 relatos, já conseguimos mais de 30 depoimentos prestados dentro do Ministério Público no Brasil inteiro: São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais”, afirmou.

O promotor disse também que João de Deus pode ser enquadrado por estupro de vulnerável tanto por ter abusado de crianças menores de 14 anos como por ter vitimado pessoas que estavam com alguma enfermidade na ocasião.

A delegada Karla Fernandes, coordenadora da força-tarefa que investiga o médium, disse ontem que a Polícia Civil de Goiás conseguiu autorização da Justiça para cumprir mais 20 mandados de busca e apreensão relacionados às denúncias contra o líder religioso.

Do total, quatro são considerados os mais importantes porque miram locais que João de Deus frequentava bastante. O objetivo das buscas é colher material para reforçar o conjunto de provas, principalmente mídias digitais que possam conter mensagens do médium para outras pessoas.

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