PM RN tem dois policiais afastados por dia em média devido problemas mentais

Entre 2016 e 2020, cerca de 5,2 mil policiais se afastaram por motivos psiquiátricos. Este ano, são 60 afastamentos por mês

Trocas de tiros com criminosos, medo de morrer e pressões hierárquicas. Esses são algumas das situações as quais policiais militares do Rio Grande do Norte e do Brasil convivem diariamente em suas jornadas de trabalho.

Essas questões, aliada à falta de estrutura e efetivo, são pontos que, segundo agentes e especialistas, mexem com a saúde mental dos policiais militares, o que dificulta a vida dos guardas e, em alguns casos, leva ao afastamento temporário desses profissionais. Neste ano, até junho, 365 afastamentos temporários por incapacidade psiquiátrica foram concedidos pela Polícia Militar do RN. Em média, são 60 afastamentos por mês, o que corresponde a dois por dia.

De 2016 a 2020, 5.282 licenças por “incapacidade psiquiátrica” foram concedidas a PMs do Rio Grande do Norte, uma média de três afastamentos por dia. Nesse mesmo período, segundo dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, 63 PMs foram assassinados no RN em confronto ou por lesão não natural fora de serviço.

Em 2021, em dados até junho, foram 365 licenças, com média de 60 afastamentos por mês e dois casos por dia. A PMRN não possui médicos psiquiatras.
Os dados fazem parte de um pedido feito pela reportagem da TRIBUNA DO NORTE via Lei de Acesso à Informação (Lei n° 12.527/2011) à Polícia Militar do Rio Grande do Norte. Segundo a PM, o ano com mais afastamentos por incapacidade psiquiátrica temporária na tropa foi em 2017, com 1.314 licenças, seguido de 2018 (1.232 licenças), 2019 (861 licenças), 2020 (930).

Em 2021, até junho, foram 365 afastamentos temporários. “O prazo para os afastamentos depende dos atestados médicos e de sua homologação”, informa a PM.
Uma dessas licenças foi a de um cabo da Polícia Militar que preferiu não se identificar em conversa com a TRIBUNA DO NORTE. Em um policiamento na Ribeira, zona Leste de Natal, um grupo de criminosos trocou tiros com a Polícia Militar. O praça de 37 anos conta que um filme passou pela sua cabeça, principalmente pensando em sua filha, recém-nascida à época. Naquele momento de sua vida, ele também vivia problemas familiares em casa.

“Você começa a repensar coisas na vida, se realmente vale a pena. Tem a pressão das ruas, dos comandantes, que acabam não se importando muito com o bem-estar. Na cabeça deles, o militar é superior a tudo, que nada nos interfere, como se não tivéssemos sentimentos”, comenta.

O agente ficou afastado por três meses e chegou a ter uma série de problemas físicos e distúrbios, como dificuldades para dormir, escurecimento da vista, coração acelerado, ansiedade, falta de ar, entre outras questões. Foi a um psicólogo e a um psiquiatra, que lhe receitou remédios. Para ele, a principal dificuldade dos policiais militares é reconhecerem que precisam de ajuda. “A terapia mudou minha vida”, acrescenta, informando que já desmamou dos remédios.

Segundo o porta-voz da Polícia Militar no Rio Grande do Norte, Major Marcelo Litwak, os motivos para afastamentos são os mais diversos possíveis, desde um trauma na rua pós-confronto, desentendimentos pessoais,  entre outros, e que os distúrbios psiquiátricos são inerentes ao policial militar. O Major explica ainda que a licença é um direito dos agentes, assim como férias, licença paternidade, entre outras.

“Esse profissional tem seus direitos legais, como férias, licenças especiais, paternidade, médica, e de acordo com aquela situação ele vai se afastar. Não é só a psicológica propriamente dita. Existe toda essa rotina administrativa que nós como gestores temos que administrar diariamente”, disse.

“O impacto é da gestão, que temos que administrar o efetivo que nos resta dentro das áreas específicas de cada batalhão. Ocorrendo o afastamento psicológico, vai ser um pouco dificultoso? Vai. Mas cabe ao gestor da melhor forma possível continuar a proporcionar o melhor oferecimento do trabalho no campo da segurança pública”, finalizou o Major Litwak.

Associação diz que policiais vivem “guerra”

O presidente da Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar do RN (ACS-PM/RN), Roberto Campos, aponta que o principal problema de se ter tantos afastamentos na Polícia potiguar é o fato de que “se torna menos um para ir às ruas combater a criminalidade”, dado o déficit de efetivo. Por lei, a PMRN deveria ter 13.466 agentes.

“A função do PM é uma “guerra diária” que se vive. Você sai de casa para exercer a atividade sem saber o que aguarda pela frente, qual tipo de ocorrência. Comumente nos deparamos com situações de alto impacto emocional”, cita. Campos acrescenta ainda que o crescimento da violência, a falta de efetivo na PMRN, aliada às dificuldades estruturais também são outros fatores que contribuem para o adoecimento mental dos agentes.

Outro policial ouvido pela reportagem é um sargento de 40 anos, morador de Natal. Na tropa da PM há 17 anos, ele explica que logo ao entrar na PMRN, em 2004, foi aconselhado por amigos e colegas a ir à terapia, já para encarar a pressão do serviço policial. Atualmente, ele segue indo ao consultório terapêutico e nunca precisou ser afastado, mas comenta que entre os colegas o preconceito em ir à terapia é considerável.

“Eu falo abertamente que procurei ajuda, mas no início escutava muita piada. De uns tempos para cá, as pessoas têm mais informação sobre a saúde mental, perguntam como é, com quem falar, discute sintomas. Virei até conselheiro. Os companheiros têm vergonha, mas vejo alguma evolução. O policial militar, por obrigação, deveria ser acompanhado uma vez por mês por psicólogo”, aponta.

PM não possui psiquiatras em seus quadrosA

Polícia Militar do RN, em seu efetivo de 8.239 agentes, não dispõe de nenhum psiquiatra na Junta Policial Militar da Saúde (JPMS). O último psiquiatra existente na PM foi reformado. Em maio de 2020, a Justiça do RN obrigou o Estado a promover um concurso público para o quadro de oficiais de saúde da Polícia Militar. A decisão partiu após pedido do Ministério Público, que chegou a requerer a contratação de 5 psiquiatras e 12 psicólogos no concurso.

O prazo dado ao Estado para realização do concurso foi de dezoito meses para preenchimento dos cargos. Quanto ao quantitativo de vagas, o judiciário determinou 90 oficiais de todas as patentes para o quadro de oficiais e 125 praças para o quadro de praças. Por lei, a diretoria de saúde da PM deveria ter 180 agentes, mas só possui atualmente cerca de 60.

De acordo com o porta-voz da Polícia Militar no Rio Grande do Norte, Major Marcelo Litwak, os procedimentos e trâmites administrativos para o concurso público serão finalizados até o final do ano e o edital deverá ser publicado até o começo do ano que vem. O número de vagas e especialidades ofertadas ainda não está definido.

“O processo encontra-se em ritmo de planejamento e acreditamos que no início do próximo ano o edital seja aberto”, comenta o porta-voz da PMRN. “Existe uma vacância de psiquiatras como de outras especialidades. Temos um claro na área médica. Esperamos que um ponto “premiado” seja o quadro de psiquiatras. Todas as áreas do quadro médico precisam de reposição”, acrescenta.

Segundo a comunicação da Polícia Militar no RN, os agentes da corporação não possuem serviço psicológico nem psiquiátrico. O acompanhamento nesses casos fica a cargo do policial, de forma particular ou pelo SUS. Cabe à Junta Policial Médica de Saúde (JPMS) da PMRN a homologação dos atestados médicos dos policiais que solicitam afastamentos.

De acordo com o major Litwak, os afastamentos temporários por questões psíquicas só são autorizados após uma avaliação da JPMS. O laudo médico é feito pelo profissional particular e encaminhado à junta. A depender das recomendações médicas, o policial militar poderá ser retirado do serviço de rua e encaminhado para o administrativo ou até mesmo uma licença total, com restrição do uso de arma, seja a institucional ou a particular.

Segundo psicólogo, PMs não aderem à terapia
Especialistas em saúde mental e que estudam o campo da segurança pública afirmam que é “preocupante” o fato de a Polícia Militar do Rio Grande do Norte não dispor de profissionais da psiquiatria em seu quadro. Aliado a isso, reforçam que é necessário debater esse tema com mais profundidade nos quarteis e batalhões da PMRN.

A Associação de Cabos e Soldados da PMRN, por exemplo, oferta semanalmente um serviço de terapia individual e psiquiatria, sem custos para os associados. O projeto é coordenado pelo psicólogo e psicanalista Róbson Batista, que fundou o núcleo há dois anos. Segundo ele, 75% dos agentes que o procuram são do policiamento ostensivo, isto é, que estão nas ruas e viaturas. Para ele, a falta de um psiquiatra na PMRN é um fator preocupante. Ele cita ainda que os agentes não dão continuidade ao tratamento.

“Seria do interesse da PM ter um profissional desses que pudesse acompanhar esses casos e afastar somente quando houvesse necessidade. E também verificar a aderência dos policiais aos tratamentos. Esse é um grande problema. Alguns vão uma, duas consultas, mas como não é da cultura policial ir à terapia e fidelizar isso, eles muitas vezes não tomam as medicações, não vão às consultas conforme sugerido.

A falta de aderência é um dos principais fatores para que o agente afastado não retorne ao quadro efetivo”, cita. Para a especialista Carmem Plácida Sousa Cavalcante, doutora em psicologia e com estudos sobre Psicologia e ênfase nas áreas de Segurança Pública, a concepção da segurança pública fragiliza a situação do policial militar no cotidiano. Segundo ela, pontos como remuneração inadequada, efetivo, afetam de forma sistêmica os agentes.

“Esse sistema mata tanto criminosos quanto policiais. Os índices de mortes também são altos. A PM morre nas ruas. Isso é reflexo de uma política de segurança pública que não dá conta da demanda do sistema. Isso adoece o agente”, diz. “Quando ele se dá conta que esse trabalho não tem reconhecimento da sociedade nem de órgãos públicos, gera frustração. As ameaças dos criminosos, vem essa insegurança profissional e o acaba vulnerabilizando como sujeito”, completa.

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